domingo, 7 de junho de 2009

“A decisão estava tomada. Eu me lembro exatamente da primeira vez em que coloquei meus olhos na silhueta daquela mulher. Era dia; tinha céu, tinha sol, tinha tudo. Semana no meio, há muito já estressado com as coisas da vida, trabalho até no topo, chefe filho da puta. Eu estava sentadinho num banco solitário do canto direito, o coletivo dessa vez estava vazio quando já saía do terminal, mas só dessa vez. Todo dia aquela coisa se atolava de gente como a barca do inferno. Gente fedida. Gente feia. Gente filha da puta (você tá me entendendo?). Então num momento brusco eu olho através do vidro o outro lado da rua, e a vejo. Descia como uma bola de seda a Coronel Neca Medeiros. Alguns pré-formadores de opinião sustentavam um conceito errôneo com relação a minha tara libidinosa. Não, não gosto de mulheres mais velhas. Eu gosto de mulher gordinha, mulher mais velha costuma ser gordinha, ter bunda larga, por isso – também – encaro mulher mais velha. Repito: ela deslizava como uma bola de seda. Coisa branquinha e redonda, deveria ter uns vinte e um anos, cara de virgem - toda mulher que me dá um punch tem cara de virgem - mas ela tinha mesmo cara de virgem. Rebolava a anca fresca como só, um par de pernas grossas que tremiam como gelatina de morango ou de coco, cabelo liso e preto até na metade das costas, a pele eu já disse; era seda da melhor qualidade, coisa branca - linda. Era o início do meu horário de almoço, talvez o fim do horário dela, quando cruzou a esquina não pude lhe acompanhar mais. Pensei: nunca mais vejo esta garota novamente. Nunca mais. Pensei apenas, pois no dia seguinte, horário parecido, vi ela cruzar a Coronel Neca Medeiros, da mesma forma - deslizando. Dessa vez o punch foi mais forte, talvez por estar mais linda; cabelo solto, calça jeans apertada, uma blusa cavada desnudando os braços fortes do ombro até a ponta dos dedos e um óculos escuro. Toda gordinha gosta de usar um óculos escuros GG. Eu quero você pra mim. Agora eu tinha uma missão, tinha de saber onde ela trabalhava, só podia ser o que fazia todos os dias naquele mesmo horário. Tornou-se um hábito para mim desejar aquela abundância de carne no meu horário de almoço. Eu achava que coincidência era algo cinematográfico: Magnólia, Boogie Nights, mais precisamente algo de Paul Thomas Anderson. Eu não estava exatamente errado, ainda não tomei chuva de sapos, porém tenho que admitir, acontecem algumas paradas estranhas nessa vida. Minha mãe é compradora compulsiva de roupas, e isso lhe rende dívidas por todos os cantos da cidade, sendo aqui a cidade da moda existem centenas de lojas, logo... Minha mãe havia conseguido um emprego sei lá onde para limpar o chão, é só o que ela sabia fazer, e então me pediu para quitar uma dívida numa lojinha da Coronel Neca Medeiros já que se encontrava sem tempo. Fui e quando cheguei na loja com a carteira nas mãos já procurando o dinheiro vi a minha bolinha de seda no balcão. Os olhos cheios de perdão, parecia estar me esperando. Que coisa linda era ela assim mais de perto. Os olhos tinham uma cor castanha de caju que só me convém usar agora a palavra doce para definir. Isso foi num sábado. Ela estava sozinha jogando paciência no computador. Me deu um sorriso amarelo, branco, vermelho, parecia um arco-íris, um caleidoscópio. Como eu gostaria de estar chapado para ter visto aquele sorriso.Oi. Ela judiou de mim com aquele “oi”, com aquele sorriso. Eu travei. Travei que nem travava o windows 98. Travei do nada. Eu queria dizer alguma coisa. “Queria você pra mim”. Mas a voz não saía. Por fim falei. Falei só o que tinha que ser falado. Oi. Vim pagar uma conta. Obrigado. Tchau. E só. Voltei para casa. Nesse dia eu estava de folga, mas gostaria de ter trabalhado, gostaria porque agora eu sabia que poderia vê-la todos os dias. Nunca mais fui embora de busão. Ia a pé para poder lançar em Dênia(descobri seu nome na assinatura do recibo) uma última olhada. A loja fechava as 6, e eu tinha que sair pelo menos 5 minutos antes. Sempre conseguia uma boa desculpa pro chefe. E sempre conseguia vê-la. Fitava-a uns 30 minutos dentro de 3 segundos. Sua visão deixava meu tempo e meus olhos estáticos. Vivia 24 horas por 30 minutos dentro de 3 segundos. Eu começava a sentir algo tão complicado quanto uma equação de álgebra. E resolver o problema de estar quase apaixonado por aquela mulher não seria de certa forma fácil. Isso porque eu nunca tive a coragem de me declarar por alguém que estivesse realmente apaixonado. Minha timidez sempre fora maior do que o meu amor por qualquer pessoa. Confesso. Nunca havia me apaixonado por uma gordinha, em todas as outras sentia apenas um puro e claro estranho tesão. De qualquer forma ela era diferente. Ela era mesmo gordinha. Homem não gosta de mulher gorda(entenda-se grande) a não ser eu. Ela devia estar carente e com as mão cheias de carinho, talvez por isso eu devesse chegar nela e dizer “Ei, se liga, eu te amo”, e quem sabe ela me aceitasse como um príncipe encantado, afinal de contas, sou poeta, tenho que ter alguma coisa interessante. Eu poderia fazer dela a mulher mais feliz desse mundo. Cantar Eu sei que vou te amar no meio da madrugada imitando o Caetano, lembrar frases de Shakspeare e de Pablo neruda(em espanhol) depois do gozo, comer pipoca assistindo comédia romântica, beijar na boca chupando bala de menta. Eu poderia. E foi assim de tanto imaginar seu corpo grosso dentro dos meus finos abraços que tomei a decisão. Eu vou falar com ela. Sexta-feira. Tudo ensaiado. Um copo com água e um valium. Cara de Rodrigo Santoro, cabelo penteado, cheiro de macho, barba por fazer. Cara de macho. Pronto. Estou pronto. Falta só a hora chegar. A hora que eu esperava era a mesma, 5:55 da tarde. A última desculpa para sair mais cedo estava dentro do plano, nada podia dar errado, até porque eu penso antes mesmo da merda toda acontecer como me sair de situações inesperadas. Tudo está dentro do plano. Até o uniforme da empresa estava de acordo com as regras, tinha que parecer algo natural, algo de macho, já que todas diziam que eu tinha cara de menino. Saí, e num minuto eu cheguei. A loja era bem próxima à empresa onde eu trabalhava, e agora eu estava ali, bem próximo dela. Puta que pariu. Travei de novo. Ela deu aquele sorriso. Porra! Que linda! Que linda! E agora o que eu faço? Aqueles dentes branquinhos, aqueles olhos de caju, aquela boca rosada e aquela pele de seda. Putz. Travei mesmo. Mas não dá pra reiniciar, não dá pra voltar atrás. Vamos lá. Macho. Cara de macho. Entrei pisando manso que nem um gato. Estava tudo num silêncio calmo e profundo. Ela me dava uma sensação de paz imensa.Oi. A voz dela cortou o silêncio como um raio no céu. Eu quero você pra mim, queria ter dito isso assim, já de cara, mas não estava dentro dos planos.Oi. Minha voz saiu fraca e rouca, limpei a garganta na hora, não podia perder a pose de macho.Posso ajudar? Pode me ajudar a ser feliz. Como eu gostaria de ser um pouco mais canalha.Eu queria dar uma olhada nas calças que estão na promoção.Ah sim, só um minuto por favor. Ela deu as costas pra mim e foi até uma das prateleiras, acompanhei cada passo, cada gesto, se esticou na ponta dos pés para alcançar as calças que eu pedi. Cintura fininha e bunda larga. Loucura. Se eu conseguir fazer essa mulher subir em cima de mim não sei se ela me mata só de prazer. Ela voltou e colocou as calças sobre o balcão, começou a falar do zíper, do pano, do preço, deu até opinião de qual combinava mais comigo, mas eu não ouvia nada, o valium já começava a desacelerar meu pensamento. Valium me dava muito sono mas eu tinha que dormir era com ela de qualquer jeito.E as camisetas? Fiz ela guardar todas as calças e pegar as camisetas, mas as camisetas não estavam de acordo com o planejado, já devia ter dito que queria dormir com ela(efeito do valium). Senti medo. Eu estava nervoso. Já era hora da loja fechar, devia estar morrendo de vontade de ir pra casa, não podia ter perguntado pelas camisetas. Era tarde. As camisetas já estavam todas debruçadas sobre o balcão, todas horríveis, nunca havia gostado de camisetas coloridas, e ela paciente me falava da malha e do preço de cada uma. Uma voz suave, apesar das formas ela era uma mocinha. Pensei até que ela fosse uma boa cantora . As camisetas acabaram.O senhor vai levar alguma?Hum...não...eu volto depois. Olhei nos olhos dela e ela nos meus. Foram 30 minutos dentro de 3 segundos. Uma relação tempo-espaço que eu nunca mais haveria de me esquecer. Era a hora exata de dizer, mas eu não disse nada. Os olhos dela pareciam me perguntar ou me pedir para dizer alguma coisa. Mas eu não disse nada além de...Obrigado. Dei de ombros e me encaminhei para a porta de vidro que dava para a rua, ela estava a rearrumar as camisetas numa outra partileira. Foi então que me lembrei; algumas paradas acontecem na vida. Não eram sapos, era água mesmo, mas era um pé d'água. Começou a cair de repente, cada gota parecia uma pedrada no chão, não sairia daquela loja nem se eu quisesse. Me virei abruptamente em direção à ela que estava a se admirar pela chuva que caía tão inesperada.Você quer sair comigo hoje à noite?O quê?V-o-c-ê q-u-e-r s-a-i-r c-o-m-i-g-o h-o-j-e à n-o-i-t-e. Ela ficou meio sem jeito. Me olhou estranho. Não esperava, já bastava a chuva. Deu um sorriso tímido com cara de virgem.Mas eu nem te conheço.Você tem a vida inteira pra me conhecer Tinha visto isso num filme do Tim Burton, não me lembrava muito bem qual, mas era um frase muito bonita e há muito eu esperava na ponta da língua dizê-la à alguém. Ela foi até o balcão, meu coração batia forte e mesmo com o som da chuva eu conseguia ouvi-lo, rasgou um pedaço de papel e rabiscou alguma coisa. Eram alguns números. Veio até mim e disse pra ligar no domingo. Eu sorri. Enfiei o papel no bolso e saí correndo no meio da chuva.”

Um comentário:

  1. Oi, gostei, Emílio, vc escreve bem, é o Keroauc que renasceu!

    Adorei Boogie Nights! Que surreal! O final uma piração: o cara põe o pau de fora e pum!

    Abraços!

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