quinta-feira, 4 de junho de 2009
Quando ele acordou o rádio ainda estava ligado, talvez tivesse ela o deixado assim, talvez ela assim o preferisse naquelas manhãs frias, mas é certo que se lembrava de ter ligado o rádio na noite anterior, e não de ter apagado as luzes da sala. Dormira ali mesmo, no sofá, com a gravata lhe estrangulando. Ultimamente andava muito distraído, se esquecia de fazer as mais puras besteiras, inclusive tomar banho antes dos porres que andava se oferecendo em casa. Não ouvia barulho de talheres na cozinha, não sentia cheiro de café, não ouvia passos na escada, apenas aquele som tranqüilo dos alto-falantes que, não saberia dizer se era jazz, ou simplesmente The Dave Brubeck Quartet, que um dia já gostara o suficiente para distinguir. O som do piano ecoando pela casa fechada e um tanto escura, despertava-lhe em anos uma estranha falta dela, principalmente dos passos no corredor que ligava a sala à cozinha, e o cheiro de café passado irritando as narinas. Levantou-se devagar, não se pôs ainda de pé, a cabeça doía bastante, pressionou as têmporas com a ponta dos dedos médio e indicador. Ficou assim um minuto. A garrafa de vodca estava ainda com dois terços de seu conteúdo. Quis se lembrar de algo. Nada via claramente. Adorava esse primeiro momento de amnésia que o álcool lhe causava, sua vontade era beber o suficiente para esquecer de tudo que passara até ali, e sim, por diversas vezes havia tentado. Quis acreditar que ela estivesse ali. Quis chamá-la pelo nome. Mas qual era o nome dela? Sofia? Cláudia? Helena? Pode ser... Viu o maço de cigarro, pensou, mas não teve vontade de fumar; também, pela primeira vez em anos. Fazia frio, não era inverno ainda, e o frio que fazia não era tão intenso, mas ele tremia todo o corpo, sobretudo as mãos, que mesmo no calor vinha tremendo nos últimos meses. Sabia do que se tratava, mas não queria se tratar. Os amigos insistiam mas, ele não tinha amigos, aliás, não tinha nada a não ser aquela fortuna deixada pelo pai. Pai que também nunca teve. A vida toda tinha sido assim; ele e ele, entretanto, nunca dera falta de alguém até aquele momento, nunca dera falta de alegria, nem de tristeza, nem de qualquer sentimento que lhe valia. A vida era somente o estar em si e o não estar, nada mais simples, nada mais complexo que isso. Ainda calçava os sapatos, ainda tinha cheiro de perfume, ainda tinha fome para manter-se vivo. Caminhou vacilante até a cozinha, lá não soube o que fazer direito, mas fez qualquer coisa; derramou óleo na frigideira, quebrou alguns ovos, temperou com sal. Tinha um pouco de leite na geladeira, então desistiu dos ovos, bebeu uns goles puros e se deixou guiar até o quarto. Os lençóis estavam muito bem dispostos, sentiu falta dela dormindo ali, sentiu falta dos lençóis emaranhados. Ele sentia falta até daquelas coisas estranhas que Bukowski dizia como: o som dela urinando de madrugada. Na verdade sentia falta de qualquer resquício dela nos cômodos daquele apartamento, já que ela não tinha cheiro, nem cor, nem nome para deixar pra trás. Tudo ficava tão vazio; tão sem cheiro, sem cor, sem nome, que ele mesmo diante do espelho era uma forma sem nada, um ser irreconhecível. Preferiu não ficar muito tempo diante de si. Quando saiu do prédio - a manhã já avançada – tinha um propósito, encontraria aquela mulher, não era mais correto esperar que ela tocasse sua campainha numa manhã de primavera. A vida não era um sonho, uma fábula, uma canção ou algo parecido, a vida era tudo aquilo que estava diante dos seus olhos; as prostitutas nas esquinas, o espetáculo circense nos semáforos, o adultério, a hipocrisia, o tráfego dos catadores de papelão, a sujeira das calçadas. Decidiu procurar nos jornais. Comprou o do dia anterior. Ela poderia estar nos classificados. Na semana que se passou ele transou com todas as garotas que conseguiu daquela página. Sem sucesso. Nenhuma delas era ela. Quis desistir, mas seu ímpeto foi mais forte, continuou transando com todas as garotas que encontrava no caminho, pagando ou não, ele queria apenas um pouco de sentimento. Por fim, gozou dos mais belos corpos da cidade, sentiu os prazeres mais intensos, cometeu dos pecados mais insanos, porém, nunca encontrou aquela mulher do café que irritava suas narinas, dos passos no corredor, que deixaria o rádio ligado e a luz da sala acesa para confortar o seu sono do porre no sofá, nem ao menos soube se o nome dela era mesmo Sofia, Cláudia ou Helena. Nunca soube nada a seu respeito.
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Vc curte jazz!
ResponderExcluirperca sua virgindade glauberiana com o Maranhão ou com o Terra em Transe: nesse último rola jazz!